quarta-feira, 20 de março de 2013

O tormento de Pascal e uma questão da clínica psicanalítica

      Como muito bem observou Pascal com sua peculiar sobriedade analítica: "a maior causa da infelicidade do homem é que ele não sabe como ficar quieto em seu quarto", pois é realmente notório que "ficar se movimento" (perambulando) frenética e ansiosamente "de um lado para o outro, nada mais é do que uma forma de desligarmos a mente de nós mesmos". Admitindo assim (por um pessoal voto pessoal de confiança), que tal assertiva possua algum mérito ao descrever um processo vigente - no entanto, não consciente - no interior do psiquismo humano, considero importante tentar esclarecer aqui o que considero como um "frequente mal-entendido" em relação a essa conhecida meditação pascaliana, uma vez que estou convencido de que Pascal emitiu tal parecer reflexivo dentro de um contexto espiritual filosófico bem específico; sendo sua reflexão, a meu ver, mais uma espécie de convite à introspecção analítico-existencial do que uma apologia do estado de reclusão voluntária (conceito que pretendo analisar mais adiante com o apoio de um texto de D. H. Winnicott) ou mesmo uma legitimação racionalizada de  sua melancolia oculta e não tratada - como tive a impressão que Maria Rita Kehl deixou sub-entendido em seu instigante ensaio sobre a depressão na contemporaneidade .
      A título dessa contextualização, vale indicar que - de uma forma um tanto estereotipada, eu reconheço - Blaise Pascal foi um pensador cristão-trágico do século XVII - para alguns, inclusive, considerado o precursor do existencialismo cristão (uma vez que ele pensou e escreveu dois séculos ainda antes de Kierkegaard) - que percebeu com aguda clareza que, se um sujeito "se mantém 24 horas" do dia antenado e atento apenas ao que se passar ao seu redor, ele torna-se basicamente incapaz de se voltar para dentro e de descobrir seu Eu interior. Em outras palavras: em seu anseio de captura, reconhecimento e busca da compreensão do mundo externo, ele perde completamente o contato com aquilo que se passa em seu universo interno. Em termos de analogia, tal "resposta neurótica" para os conflitos da existência, se passa como uma operação inversa à solução psicótica, que para evitar a tensão exercida pelo embate contínuo entre realidade externa e realidade interna, rompe com o polo da realidade exterior perdendo-se na dimensão alucinante de seu próprio delírio. A engenhosidade da solução neurótica para tal conflito (se é que se pode dizer assim) consistiria então no corte radical com a realidade interna, sendo o retorno do recalcado acolhido apenas com uma hesitante inquietação que não pode ser assimilada enquanto uma realidade própria (ao passo que não é também radicalmente projetada para o mundo externo e recebida assim como uma impressão totalmente vinda de fora, como ocorrem nas defesas características da paranoia), pois a introspecção e a auto-observação necessárias (indispensáveis) para o trabalho analítico está ausente, impossibilitando o sujeito de se apropriar de seu si-mesmo e sobretudo, o mantendo refém das mais variadas e caprichosas formas de alienação e distração que a cultura lhe é capaz  de oferecer quando o seu desejo mais proeminente é o de se esquecer de si.   Mas o fato irrevogável que se encontra então no cerne da questão que atormentava Pascal, é que esse entrar em contato com o nosso mundo interno nada a mais é do que descobrir-se um problema... pois esse olhar para dentro tende, inexoravelmente, ao reconhecimento de nossa finitude e de nossa brutal fragilidade enquanto criaturas criadas a partir do nada (afinal, para Pascal, o melhor dos homens ainda não passa de um "caniço pensante", que, contudo,  possui a misteriosa capacidade espiritual de abstração e de objetivação da morte enquanto destino comum inexorável).
      Dito isto, me pergunto: no que concerne a clínica psicanalítica, qual seria a armadilha sutil que comporta uma das alternativas de interpretação - absolutamente coerente e plausível, diga-se de passagem - dessa genial reflexão Pascaliana  (que eu considero mais propriamente uma espécie de análise estendida ao extremo das possibilidades existenciais do homem) quando esta, porém, é realizada fora de seu contexto próprio?
      A resposta é relativamente simples: a de que tal reflexão poderia cumprir, em determinados psiquismos, uma função psicopatológica defensiva muito próxima da que Winnicott entendia como sendo um estado interior de reclusão, isto é, um mecanismo tipico de funcionamento mental que basicamente se define por uma busca voluntária (inconsciente) de isolamento e que denota toda uma organização defensiva com expectativas ora paranóides ora neuróticas de persecução (conotação muito semelhante com a percepção emitida por Kehl e que, portanto, neste presente ensaio irei abordá-las conjuntamente)
      Podemos aqui, ao partir de tais distinções detalhadamente demarcadas, perceber que estamos diante de dois mecanismos ou formas de funcionamento mental bem diferentes, mas que, no entanto, a um primeiro olhar e uma primeira escuta podem perfeitamente ser confundidos, uma vez que a linha fronteiriça entre ambos é extremamente delicada: de um lado, uma tendência inquisidora existencial analítica com propriedades e funções integradoras da personalidade total; do outro, uma tendência regressiva que visa o rebaixamento/evitamento da tensão promovida pelo encontro humano (que tendo a considerar como o mais verdadeiro e profundo alimento espiritual do homem). Assim, de acordo também com a esplêndida distinção Espinoziana, de um lado é possível ver/escutar um impulso agregador e integrativo livre (pois mantém-se em seu próprio comando), fundamentado no afeto ativo primordial, que é o amor; e finalmente, do outro, observa-se um impulso alienado e escravo de uma compulsão, que é  orientado essencialmente pelo medo - o afeto passivo por excelência.
      Bem delicada se encontra então a posição do analista diante da ambiguidade de um discurso que pode significar tanto uma coisa quanto outra (ou ainda as duas juntas)... mas quem de fato é seguro o suficiente para afirmar que não é justamente das primeiras faíscas que se produzem as grandes explosões? Ou que não seria das primeiras reticências e dúvidas do espírito que surgem as mais belas e criativas produções sublimatórias concebidas pelo espírito humano?
      O que me parece mesmo, é que a resposta para essas perguntas não pode ser adequadamente realizada no decorrer dos processos vitais (uma vez que ela não pertence propriamente nem ao presente nem ao passado) que incidem sobre o desenvolvimento humano, pois ela está vinculada essencialmente ao universo indomável das possibilidades futuras. Como muito bem salientou Kierkegaard, "relacionar-se na expectativa para com a possibilidade do bem, é esperar" (mas o fundamento espiritual que reside na base da esperança é justamente o amor); "enquanto relacionar-se na expectativa para com o mal é temer", e é aqui que as possibilidades vindouras se vinculam mais estritamente com duas macro tendências mutuamente excludentes e seus respectivos sub-desdobramentos no interior do psiquismo humano: (I) a esperança amorosa do acerto, do sentimento de bem-aventurança e do estado de graça e glória acompanhando uma confiança básica no pressuposto de que experimentar a vida "vale à pena"; ou (II) o temor fatalista e desesperado do erro, fundamentado na exacerbação unívoca do vazio e do sentimento de falta gerados pelo fantasma inextirpável (constatador) de que o nosso desamparo primordial e estrutural é a condição sine qua nom e inviolável do destino humano. 
      Enfim, parece que tal "análise crítica" (apesar da expressão paradoxal) nos remete, em seu final, tão somente ao ponto inicial de nossa discussão: aos processos microscópicos de subjetivação e de construção/modulação permanente de nossa realidade interna, que na espécie humana, uma vez iniciados na primeira infância, mantém-se desafiadoramente seu vigor até o ponto culminante do crescimento e do desenvolvimento psicofísico, isto é, até a morte daquele que é, ou já foi um dia vivo.             


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