segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Psicanálise e a "moral privada"

A ciência psicanalítica foi desenvolvida em situações privadas para atender necessidades particulares de sujeitos singulares. Portanto, seu valor e eficácia se restringe justamente ao ambiente clínico, protegido, onde a moral opera em um quadro reduzido que evidencia modos peculiares de internalização simbólica dos relacionamentos íntimos. Em outros termos, a psicanálise é um método de investigação e tratamento do que poderíamos chamar de "moral privada" e dos adoecimentos possíveis advindos desta. O que uma análise oferece é justamente a possibilidade de uma reorganização pessoal com menos dividendos psíquicos na administração da tensão entre impulso (desejo) e interdição do impulso.
Qualquer tentativa de extrapolar observações clínicas para o contexto do debate político, onde vigora a "moral pública", está então fadada ao fracasso. A epistemologia de uma é insuficiente para análise da outra, e é por isso que "politizar a análise" é tão inadequado quanto "psicologizar a política".
Cônscios disso, muitos psicanalistas optam pelo "alheamento" em relação a esta última. Outros pretendem agarrá-la com um arsenal de instrumentos cegos ao trabalho (realizando inclusive "casamentos" altamente suspeitos entre Freud e outros teóricos subversivos da cultura, como tem sido visto com relativa frequência).
Segundo a dura crítica do analista cultural Philip Rieff, " a sociologia, por exemplo, seria apenas "psicanálise aplicada", de acordo com Freud. Isso tem sido interpretado por muitos psicanalistas como significando que eles não tem necessidade de dominar a sociologia. Psicanalistas escrevem atualmente sobre religião, arte, literatura e outros campos com uma incompetência comovedora.(...) Mas de longe a expressão mais daninha e sintomática dos psicanalistas encapsulados dentro das limitações de sua própria formação profissional é que os analistas são, por essa mesma educação, encorajados a "apegar-se aos dados e hipóteses derivados da observação clínica" e a fazer a partir daí extrapolações sobre temas sociais, antropológicos ou históricos sem estudo sistemático da sociedade do período nem leitura sistemática da literatura relevante. Por essa ignorância, contudo, Freud é parcialmente responsável, como tem sido demonstrado".
Do outro lado do espectro, encontramos assim aqueles adeptos do silêncio sobre a maioria destas questões. Seguindo mais um pouquinho com Rieff: "As dicotomias entre uma existência definitivamente dotada de sentido e a existência sem sentido pertencem às eras das filosofias públicas, das teologias comunais e das discussões políticas sobre o bem comum. Ecologicamente, essa civilização de transição está se tornando um vasto subúrbio, algo como o Estados Unidos, povoado por comunidades divididas com no máximo dois membros, talvez dois membros infantis apanhados no meio de uma guerra particular e nem sempre civil; em relação a essas comunidades íntimas, de duas pessoas, o mundo público está construído como um vasto desconhecido, que aparece em horas inconvenientes e faz exigências consideradas puramente externas, e portanto, sem o poder de evocar uma resposta moral genuína".
Parece realmente que, para o "homem psicologicus" do final do século XX e início do século XXI, a administração pessoal da moral privada, isto é, a arte de se preservar alheio ao exterior e se expandir somente no interior dos relacionamentos íntimos intersubjetivos suplanta qualquer devoção possível a um ideal de ação comunal; o estranhamento radical sobre si suplanta qualquer possibilidade de clareza e confiança na ação política; parece mesmo que o único ideal que um sujeito destes pode alimentar a respeito de si mesmo na vida é que não se foi ingenuamente enganado e jogado para longe de si mesmo, por nada ou ninguém, nem mesmo por aquela "psicose normal", que hoje em dia se convencionou chamar de amor.

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