domingo, 12 de fevereiro de 2012

O significado da fé religiosa (em homenagem ao meu querido colega Luiz)

      Colegas e amigos, advirto que neste esboço de ensaio, não tenho nenhum interesse em objetar ou muito menos combater a fé ou a crença pessoal de ninguém (acredito que tal atividade seria apenas uma manifestação gratuita de violência); sinceramente, acredito que cada ponto de vista singular (isto é, cada subjetividade) deve ser não apenas respeitado, como também integralmente preservado. Contudo, no plano do debate filosófico, ressalto que esse mesmo ponto de vista apenas tende a ganhar em termos de substância e coerência, quando o mesmo poder ser ainda subsequentemente integrado em um todo maior - caso contrário, ele automaticamente desembocaria num erro caracteristicamente moderno anulando-se em seu próprio solipicismo.
      Deste modo, proponho que o raciocínio que eu pretendo aqui desenvolver seja interpretado em um sentido mais sociológico, epistemológico e filosófico do que propriamente psicológico, ou mesmo  (psico)analítico.
         Sendo um pouco mais diretivo, defendo aqui (diria até com uma suspeita dose de segurança) a hipótese polêmica de que, qualquer processo subjetivo de refutação ou abandono de crenças anteriores (uma antiga fé de cunho religioso, por exemplo) atingida através de uma análise pessoal nada mais é do que um indicador objetivo do "sucesso" desta análise (entendida no sentido Freudiano ortodoxo do termo). Tentarei explicar isso um pouco melhor.
        No contexto psico-histórico de evolução cultural no ocidente, a psicanálise (dizer psicanálise freudiana é uma redundância, pois só existe psicanálise no sentido patente do termo, a partir método criado e preconizado por Freud) nada mais representa do que o ápice de um processo social e cultural de criticismo (de cunho positivista), que visa - e não podemos dizer visava, uma vez que trata-se de um processo ainda vigorosamente em curso - precisamente à subjugação da fé religiosa e a desconversão doutrinária de toda a cosmovisão produzida e organizada pelos grandes sistemas do pensamento Antigo (em especial o cristão). Por outro lado, avançando um pouco mais além e -  porque não? - utilizando-se dos dos mesmos instrumentos empregados pela análise para desmascarar e subjugar a fé religiosa como mero produto de nossa fantasia inconsciente, podemos perceber que tal processo colocado em curso pelo impulso moderno Iluminista gerou uma nova espécie de conversão e culto de caráter idólatra e puramente ideológico aos dogmas materialistas das ciências positivistas.
        Desse modo, defendo ainda que enganam-se redondamente aqueles que pensam que Nietzsche foi o responsável pela morte de Deus no mundo moderno, pois Nietzsche, na qualidade de um voraz crítico da cultura, apenas constatou a falsa devoção e a fraqueza espiritual da vida moderna (em verdade, Nietzsche já havia percebido em meados do século XIX, que os sujeitos produzidos pela modernidade não levavam muito a sério esse negócio de Deus e que, mesmo aqueles se definiam crentes,  no entanto, não se identificavam existencialmente de forma tão visceral com os princípios éticos do Cristianismo quanto seus predecessores da Idade Média, uma vez que as questões mais pragmáticas do cotidiano e da sociedade dos homens absorviam a maior parte de suas energias físicas, mentais e espirituais); não, tal reviravolta espiritual de proporções tão grandes no seio de uma sociedade humana dificilmente seria provocada por um filósofo ou livre pensador, se ele não estivesse engajado na utopia moderna de esclarecimento científico do mundo (processo resumido e condensado pelo sociólogo Max Weber através da feliz expressão "processo de desencantamento do mundo"). É por isso que me parece bem mais plausível reconhecer que, a figura humana que efetivamente exerceu grande responsabilidade pelo rebaixamento final (diríamos, talvez, o golpe de misericórdia) da dimensão do sagrado e do eterno no drama da condição humana, foi justamente o velho Sigismund, através da criação de seu movimento e método psicanalítico de investigação "científica". De fato, eu tendo a concordar que a crítica de Freud ao Teísmo judaico-cristão (afinal, Freud nunca se interessou muito em aprofundar seus estudos sobre as religiões em suas manifestações mais ricas e variadas; ele simplesmente associava religião ao cristianismo como que por uma espécie de relação mútua de equivalência simbólica) é extremamente dura e contundente e, portanto, à uma primeira observação, de nada fácil objeção.
      Mas o relevante aqui neste ensaio é, portanto, enfatizar que Freud foi um personagem decisivo nesse processo antidoutrinário de desconversão do cristianismo (que vale destacar, não se iniciou de forma alguma com Freud, mas encontrou em sua pessoa um de seus mais fortes aliados, uma vez que este judeu desgarrado considerava o judaico-cristianismo um constructo teórico precário); e que, ainda, tal processo amplo e ambicioso, se estende de uma forma geral a todas as outras grandes formas de expressão religiosa ou filosófica produzidas em conjunto pelas culturas pré-modernas. Logo, a questão aqui a ser seriamente considerada é que, em última análise, não é possível (pelo menos eu não consigo) evadir-se da constatação de que qualquer processo de desconversão para se tornar efetivo deve ser seguido de um novo processo de conversão (apesar de que Freud não tinha qualquer interesse neste sentido; ele simplesmente  negava ideologias consideradas infundadas ou simplesmente absurdas, mas sem se comprometer a defender qualquer outro tipo de doutrina salvadora) e que neste caso, tal processo assume como premissas fundamentais os dogmas materialistas das ciências naturais positivas em alto nível de expansão desde o século XVIII - geralmente tal apropriação ocorre de forma não intencional/consciente, é claro! Porém, não deixa ainda de ser  notável (e ao mesmo tempo espantoso) o fato de que  muitos destes dogmas são sustentados passiva e acriticamente por Freud em praticamente toda sua obra.
     Desta forma, mesmo que modestamente, Freud foi um dos maiores (senão, o maior) destruidores de ilusões caducas produtoras de neuroses, tais como, por exemplo, o ideal de Divindade, uma vez que reconheceu este apenas como uma reminiscência deformada de um temido e tirânico pai de uma suposta horda primitiva. No entanto, o ateísmo de Freud e consequentemente, de sua psicanálise, não possui um consistente embasamento filosófico, pois sendo de caráter eminentemente metodológico, ele nem sequer precisou recorrer à filosofia; o cerne de seu argumento também não pode ser considerado ontológico, porque ele é genuinamente psicológico. Como pressuposto dominante praticamente em toda a medicina oficial do século XIX e início do XX, o materialismo ateu (adotado por Freud já na universidade) não foi uma conclusão a qual ele chegou após uma observação laboriosa dos extensos dados recolhidos pela ciência psicanalítica, pois ele (o materialismo ateu), foi na realidade a sua premissa básica; logo, foi justamente a sua "descrença" a priori que possibilitou a construção de seu maravilhoso edifício psicanalítico a posteriori, ou, em outras palavras: o seu ateísmo não equivale a conclusão feita por um sábio, mas sim a premissa precoce que motiva um aprendiz.
      Quando afirmo isso, quero enfatizar que Freud, equivocadamente (em minha humilde concepção), pretendeu realizar uma façanha impossível, isto é: refutar premissas teológicas com argumentos extraídos da psicologia. É claro que ele nunca iria achar nada com isso, ou melhor que ele apenas iria achar o Nada.
      Vou tentar ilustrar tal situação com um exemplo bem factível: imaginemos que uma criança pequena seja separada de seu pai que, por motivos de guerra, foi convocado a integrar-se ao exército para defender seu país de uma invasão inimiga. Suponhamos agora que se passaram 30 anos e que este pai nunca retornara da linha de combate, mesmo após o fim da guerra; porém, em detrimento disso, constatamos que o filho continua aferroado à hipótese esperançosa de que seu pai ainda esteja vivo (mesmo que este pai jamais tenha entrado em contato ou dado qualquer espécie de notícia que validasse tal esperança). Pois bem, gostaria de ver quem, em tal situação, seria capaz de violentar tal garoto (agora um homem), afirmando que nada, a não ser a sua crença infantil, sustentaria a hipótese neurótica de que seu pai ainda esteja vivo. Contudo esta é justamente a linha de raciocínio que Freud emprega para definir em sua obra o significado de uma ilusão. Traduzindo livremente, então, no sentido Freudiano, ilusões seriam todas aquelas crenças fundamentadas não em uma avaliação e num exame ponderado que assimilem em si o princípio de realidade, mas sim aquelas que, ao negligenciarem tal princípio, satisfazem as moções de desejo arcaicas que residem na dimensão infantil e inconsciente de nosso psiquismo. Ok, isso é muito bonito!! Mas convenhamos, não diz absolutamente nada sobre a possibilidade de sobrevivência e existência real do pai. Isto é, independentemente do desejo do filho o pai pode ou não estar vivo e é por isso que, condenar desde o início tal hipótese como neurótica devido a sua possibilidade improvável seria um erro estúpido em termos de raciocínio lógico, uma vez que a dimensão psíquica da vida, em certos momentos, pode coincidir e confirmar certos aspectos da realidade, mas em outros não e o fato de isso não ocorrer não é de forma alguma um indício irrefutável da inexistência do fato real enquanto tal. Neste caso citado, ele não diz nada sobre o fenômeno real justamente porque não estabelece qualquer relação direta com o mesmo, trata-se de duas dimensões distintas de análise e é por isso que um argumento puramente psicológico será sempre manco e insuficiente para refutar um argumento de caráter estritamente filosófico, teológico ou mesmo ontológico. De uma certa maneira, toda a fenomenologia de Edmund Husserl foi erguida para tentar amenizar e corrigir o impacto dessa confusão gerada pela revolução cultural e filosófica produzida pela intelectualidade moderna.
      Conclusão trágica que podemos então retirar de tal "confusão de línguas" (para usar uma bonita expressão em homenagem ao gigante Sandor Ferenczi): o perfil de homem maduro que Freud vislumbrava (e que diga-se de passagem, o senhor Jacques Lacan encarnou com excelência), representa nada menos que o ideal do sujeito moderno desencantado com o mundo, que assume de maneira radical o seu desamparo frente aos dilemas da existência humana e que, por fim, teoricamente, não necessitaria mais das formas arcaicas de consolo empregadas pelas enferrujadas religiões, por sua vez, baseadas em suas crenças consideradas ora primitivas ora infantis. Trata-se sem dúvida de um ideal paradoxal, pois apesar de parecer modesto é e em si mesmo super ambicioso, e, no entanto, muito difícil de ser construído e sustentado existencialmente, pois tal ideal apresentado por Freud nada mais é do que uma espécie de "anti-ideal" por excelência! E como sempre, Freud é mais uma vez um gênio em captar a essência do espirito de sua época, a modernidade, pois de uma certa forma, ele concorda, reafirma e valida a maior parte de nossa literatura (moderna), na qual é notável perceber que a figura humana do herói foi desbancada e substituída pela imagem do anti-herói (uma espécie degenerada de homem estúpido e fracassado, quando não um completo idiota).     
      E finalmente, o problema epistemológico envolvido em todo esse processo decorre do fato de que Freud apenas conseguiu extirpar os fantásticos mitos de criação vinculados à fé religiosa (claro que essa máxima somente pode ser válida para aqueles que acataram a tal execração do mistério) à custa da imposição de suas crenças dogmáticas com relação aos mitos científicos (tais como: iluminismo, racionalismo científico, evolucionismo, empirismo, materialismo, positivismo, totemismo - mito este, inclusive por ele próprio criado). Neste ponto, eleva-se um paradoxo que sob o meu ponto de vista é altamente admirável: trata-se da proeza que Freud realizou ao articular em uma só e na mesma teoria correntes de pensamento essencialmente antagônicas, tais como racionalismo científico e idealismo romântico; é como se na expressão manifesta de sua atividade consciente ele assumisse o espirito do cientista moderno, mas nas entrelinhas e na expressão latente ao seu pensamento eclodisse a exaltação romântica da intuição, confirmando, sempre que possível, as verdades profundas que residem no interior de nosso inconsciente. Como um todo, sua obra e sua vida foram uma afirmação brilhante de suas próprias teses e assertivas, o que lhe confere, sem dúvida, o atributo de um gênio e, como é a sina de todos os homens geniais, ele teve que pagar um preço: o preço de viver, enxergar e escutar muito além da capacidade de viver, enxergar e escutar da maioria dos contemporâneos de sua época. Tal é o fardo e a tensão incomensurável que tendem a ser sustentadas pelo homem que, por sua genialidade, se elevou um pouco acima da trivialidade de vida do homem comum (sem dúvida, uma das coisas mais significativas que Freud enxergou, foi a de que o cristianismo não falava mais uma linguagem acessível ao sujeito moderno, assim como também ele não atendia às suas aspirações de conquista do mundo e de domínio progressivo sobre a natureza; uma vez perdido o sentido profundo de tais ensinamentos, apenas um fenômeno poderia ainda sustentá-los: a neurose, e esse é que foi justamente o preciso objeto de ataque de Freud com a psicanálise; sendo assim, o mais correto é compreender seu combate ideológico ao cristianismo como uma consequência inevitável de sua luta contra a patologia neurótica; se para isso Cristo tiver de cair, que caia!).        
    Contudo, no contexto aqui aplicado, julgo importante ainda realizar e apresentar uma última definição que possibilite um avanço do diálogo e dessa discussão no futuro. Trata-se da noção e do conceito de dogma - tal como eu o concebo. De uma maneira simplificada, defendo apenas que um dogma deve ser entendido  como uma certeza conceitual de base, que abre as portas para toda e qualquer discussão posterior, e, dessa maneira, possibilita o avanço de qualquer saber. Isso quer dizer que dogmas não são privilégios exclusivos das religiões; as ciências também possuem igualmente os seus, caso contrário, os cientistas teriam que retornar sempre ao início da discussão e qualquer progresso do saber seria uma ficção impossível. Dogma é um consenso comunitário sobre as bases que delimitam e circunscrevem os limites do conhecimento em um determinado campo do saber, e até eles mesmos podem ser reformulados por mentes capazes. É um erro primário conceber os dogmas, a fé e a crença de um lado, e as certezas empíricas e cientificamente comprovadas do outro. Até porque, para que as certezas científicas possam realmente ser provadas, é necessário anteriormente dos dogmas, da fé e da crença do pesquisador, pois no caso contrário, não seria possível provar nada. Neste sentido, é bem fácil apresentar um dogma irrefutável para toda e qualquer comunidade psicanalítica: a noção comum aos psicanalistas de que existe um inconsciente psíquico. Os psicanalistas podem e, de certa maneira, devem, discutir (e de fato discutem muito) sobre o que é e do que trata esse inconsciente; mas eles não podem questionar a sua validade prática e teórica sem colocar seus pés para fora da psicanálise, entendida enquanto campo delimitado de pesquisa clínica e até mesmo teórica. O conceito de inconsciente é um axioma da teoria psicanalítica e graças a sua aceitação enquanto dogma é que as discussões podem ser desenvolvidas no sentido de avanços, pois se a todo o momento aparecer um sujeito questionando se o inconsciente realmente existe, a produção do saber ficará estagnada e sem possibilidades concretas de evolução e progresso.   
     Da mesma maneira, voa completamente na direção oposta aos fatos, aquele que separa a fé crédula e a intuição inocente de um lado, e o conhecimento maduro e o empirismo científico do outro. Como eu acho que aprendi, depois de ler repetidas vezes "A vontade de crer"  de William James, a fé não é apenas aquilo que começa quando o conhecimento efetivo e materializado cessa; não, a fé, é na verdade aquela confiança básica que possibilita que qualquer conhecimento se produza. Todo o pensamento é de alguma forma orientado na direção da fé e da autonomia individual do pensador. Assim, torna-se absolutamente inconcebível pensar em qualquer coisa sem anteriormente concebê-la como da ordem das possibilidades, e aqui, a fé, há muito já iniciou o seu trabalho... mais ainda: a fé apenas completa este trabalho, quando o intelecto (no caso humano, de forma variável, mas imprescindivelmente limitado) não é mais capaz de atuar de uma maneira satisfatória para resolver toda a gama insolúvel de problemas existenciais que assolam o indivíduo - até porque, como um herdeiro de Pascal e Max Scheler, acredito que as grandes verdades do sujeito, aquelas que são capazes de tornar sua vida efetivamente vivível e suportável (dando-a um colorido todo especial) nunca são verdades abstratas do intelecto, mas sempre as verdades intuitivas de seu próprio coração! A partir daí, o sujeito fica impelido a depositar sua confiança, sua intuição e sua disposição interior à crença e a ação baseando-se na credibilidade de suas fontes (mesmo quando estas se  apresentam parcas ou enxutas), selecionadas geralmente de acordo com seus próprios critérios pessoais de razoabilidade, mas que lhe oferecem enfim, a melhor explicação acessível para os mais misteriosos fenômenos que o envolvem.
     Neste sentido, a certeza e a convicção absolutas devem ser consideradas como privilégios dos Deuses (ou dos lunáticos e paranóicos), uma vez que os homens (neuróticos e miseráveis como muitos de nós), condenados como estão às incertezas e as amarguras da vida, invariavelmente devem recorrer e apelar para alguma forma de fé, que deve ser entendida agora em seu sentido religioso mais profundo: “uma inclinação interior de adesão e crença a algum sistema simbólico de pensamento, que ofereça, por um lado, um ponto de orientação no passado, e por outro, um objeto de devoção no futuro”, segundo a precisa observação de Erich Fromm. Sem estas âncoras, o sujeito fatalmente se encontrará perdido em sua existência - tal como o niilista ou um cachorro do mato.
     Tomando ainda um segundo significado possível para o conceito de fé, eu me arrisco a dizer  que ter fé nada mais é do que assumir a insuficiência do Eu diante da tempestade da vida e, de uma maneira resignada, deixar-se absorver e entregar-se a algum sistema simbólico de pensamento que transcende a existência individual temporária do sujeito e, desse modo, o escreve no plano infinito e, portanto, imutável das essências eternas. De fato, o ideal que apresento remonta às raízes clássicas do Platonismo primitivo; não ofereço nada de novo! Mas trata-se sim, de algo que é também muito difícil de ser praticado  e apreciado com serenidade diante dos horrores impostos pela nossa realidade natural. Agora, simplesmente conceber a fé como uma “crença patologicamente infundada no absurdo” é um erro cretino! Nas brilhantes palavras do teólogo Kierkegaardiano, Paul Tillich: “Fé é a experiência de autoafirmação incondicional da potência de um ser, que se manifesta de forma efetiva através de suas próprias escolhas e atos de coragem”; no estado de fé, que Tillich também descreve como "a coragem do desespero" o ser individual apodera-se da potência fundamental que orienta o mundo, ou seja, do "ser-em-si" - aquele que determina o curso infinito da essência transcendente.  
     Em síntese: me parece que Freud, por mais genial que ele realmente foi,  ele ainda não conseguiu refutar satisfatoriamente a premissa básica da fé religiosa; ele apenas retirou sua cota de investimento libidinal em Deus e o depositou na Ciência (que rapidamente se tornou o seu novo e adorado deus).
     No entanto, quanto mais observo, mais ressalta aos meus olhos que o principal problema da concepção puramente materialista do mundo, não decorre do fato de que as pessoas que se julgam "materialistas" acreditam apenas naquilo que elas são capazes de ver (através de seus próprios órgãos de sentidos); o mais grave defeito deste tipo de análise e concepção cosmológica é que essas pessoas acreditam que são realmente capazes de ver tudo. Trata-se de uma espécie de extravio da fé, ou de uma "fé neurótica", pois ela assume a dúvida de tal forma radical, que duvida de coisas que estão praticamente acima (ou abaixo) da capacidade de duvidar, ao passo que assume uma certeza inconveniente em questões que a duvida seria uma conduta bem mais apropriada.
      Para piorar um pouco o cenário, reconheço também que o ateísmo de Freud era de caráter altamente especulativo e metafísico, porque para se afirmar tanto que Deus existe como que Ele não existe, é preciso ter a estranha e anormal capacidade de colocar a cabeça para fora do mundo e ver aquilo que se oculta por detrás de seu fundamento último. Em suma, a afirmação metafísica de que Deus não existe também não pode cientificamente ser comprovada e, além disso, ela simplesmente equivale a depositar basicamente toda, ou pelo menos uma boa parte da própria cota de fé em um Nada transcendente. É justamente aí, nesta aposta, que se encontra o núcleo da posição de Freud, quando o mesmo pretende substituir a metafísica pela metapsicologia - uma posição demasiado infundada e arriscada em minha singela opinião... Ah, só mais um detalhe: muitas pessoas ainda não perceberam, mas o ateísmo é a mais nova religião moderna, afinal, ele cumpre todos os requisitos para uma orientação e devoção de propósitos no mundo (ou seja, aquela função que qualquer religião se compromete a fazer) - no entanto, a natureza e as características específicas de tais propósitos merecem uma atenção e dedicação especial, que devem ser apreciadas em outro trabalho.
      Contudo, procuro ao final deste ensaio ressaltar tão somente que a diferença crucial que separa a mentalidade moderna da antiga, é que do ponto de vista metafísico, a religião moderna não confia em um Deus (como todas as antigas religiões Teístas ou Politeístas); ela confia em um Nada. 
      Prefiro agora, com isso, encerrar minha reflexão. 

2 comentários:

  1. Meu caro amigo Felipe, como você viu, apesar de escrever alguns textos densos (Como o da clínica Sherazadeana e as mil e uma noites no divã), gosto mais de percorrer caminhos mais leves como a reflexão sobre o inconsciente naquele texto calcado numa poesia de um desconhecido poeta Sufi.

    Poderia começar com Karl Jaspers medico de formação, que se dedicou de modo especial à psiquiatria, além de ter trabalhado como voluntário na clínica psiquiátrica da Universidade de Heildeberg, mas depois ter virado filósofo;
    Ele escreve pacas sobre a Fé sobre outros contextos.
    Mas acho que não tenho esta “pegada”, estou mais para um maluco Sufi que gira gira até entrar numa espécie de transe.

    Pode ser um vício, mas me pergunto antes de me perguntar “Qual o significado da fé religiosa”, a mesma coisa que teria dito o mestre Zen a um dos seus discípulos...

    Conta à parábola que um dos mais brilhantes discípulos de um iluminado mestre Zen estava extremamente agoniado.
    Seus dias e noites eram permeados pela necessidade de entendimento da origem das coisas e da explicação da razão da nossa existência e da existência do universo.

    Foi então o referido discípulo até o mestre e fez o seguinte questionamento:
    ¬ Sábio mestre: De onde vêm as estrelas, os mares, as montanhas, a vida, a alma humana, a razão da nossa existência?
    O mestre Zen olhou o brilhante discípulo com um olhar de não entendimento, parecia que o mesmo estava falando uma língua estrangeira e ficou em silêncio.

    Não obtendo resposta ao questionamento, o discípulo insistiu na pergunta:
    ¬ Sábio mestre: Da onde vêm as estrelas, os mares, as montanhas, a vida, a alma humana, a razão da nossa existência?

    Ai meio que saindo de uma espécie de torpor, o mestre Zen respondeu:
    ¬ Antes de procurar saber da onde vêm todas estas coisas meu filho, não seria mais sábio procurar saber da onde vem esta sua pergunta?

    É neste contexto que me situei no comentário que gerou este seu questionamento, para mim subjetivamente, a questão maior do que ter, manter ou perder a fé, era o que me movia a me implicar tanto com ela, ou ai sim, numa abordagem personalíssima e profundamente psicanalítica me implicar com o que ela simbolicamente me representava!

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  2. Muito bacana Luiz; A parábola é muito boa... Ela reflete muito a nossa realidade atual: desde Kant, não faz mas mesmo muito sentido questionar-se sobre os significados últimos da existência e do universo, pois este e praticamente todos os filósofos que o seguiram, consideravam impossível para mente humana conhecer e absorver o conteúdo concreto do que chamamos de realidade... apesar dos mais energéticos esforços, ela (a relaidade) persiste em se esconder de nossa mente e o que nos resta então, é voltarmo-nos para dentro e indagar a nossa própria mente sobre a sua capacidade de teorizar sobre o mundo! Todos os modernos se contentam ou aprenderam a se contentar com esse tipo de auto-inquirição, pois considera-se hoje, que isso é o máximo de conhecimento "seguro" que nós podemos atingir sobre a vida; de resto permanece o mistério inapreensível e torturante do real, sempre contingente e fugídicio. Não tem nada de errado com essa visão de mundo, mas não deixa de ser importante (fazendo como sempre fazem os modernos), relativizá-la também a partir de seu próprio contexto histórico, que é o nosso! O que eu apenas venho tentando fazer é combater a HEGEMONIA desta forma de organização do pensamento, demonstrando que existem ainda muitas outras possibilidades reservadas a nós, criaturas humanas...

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